sexta-feira, 28 de abril de 2017

A coluna vertebral não deixa



Estou com fortes dores lombares, ainda sem diagnóstico preciso. O sentar-se e o escrever me causam grande desconforto, razão pela qual deixo de publicar meu artigo desta sexta-feira. Espero voltar a fazê-lo já na próxima sexta, a depender dos exames médicos em andamento.

Abraço meus queridos leitores. Até breve!

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Políticos Cientistas



Políticos profissionais, políticos empresários, políticos religiosos, ... . No geral, eles são alheios às carências materiais das populações e às sensibilidades da natureza, levando-nos à bancarrota social e ambiental. Não é questão de pessimismo exagerado: é o alerta da ciência. O Homo Sapiens cava sua própria extinção, não douram a pílula os cientistas.

Urge então que o Saber passe a ter influência efetiva sobre os Poderes, o que será difícil de acontecer enquanto os cientistas em maioria permanecerem confinados em seus laboratórios. Felizmente, a opinião pública começa a pressionar para a entrada em cena de uma nova e indispensável classe política, os políticos cientistas. 22 de abril é O Dia da Terra.  Neste próximo, haverá a Marcha em Prol da Ciência: milhares de cidadãos se manifestarão para demonstrar seu comprometimento com as verdades cientificas -- o auge deverá ser a capital norte-americana, Washington; entretanto, 514 outras cidades de 54 países engrossarão a marcha. Ecoará pelo mundo o apelo ao engajamento dos cientistas na política: esperança de uma profunda e não tardia mudança de comportamento da governança global em favor do Homem, da Natureza e da valorização da pesquisa científica.

Governos ameaçam a ciência de diversas formas: restrições orçamentárias, censura aos pesquisadores e relegação a último plano de agências de fomento à pesquisa. O caso de censura mais escancarado vem da Rússia. A eleição à Academia de Ciências foi anulada por pressão da alta cúpula do governo Putin. Motivo: os três candidatos propugnavam, em uníssono, por uma direção científica independente e autônoma.

A ciência também padece dos efeitos deletérios de políticas governamentais seja irracionais seja xenófobas. O governo Trump toma medidas de sabotagem dos acordos de Paris visando à redução das emissões de gases de efeito estufa, comprovadamente as responsáveis principais pelo aquecimento global. Por outro lado, a pretendida interdição de entrada nos Estados Unidos de cidadãos de diversos países trará significativos prejuízos à pesquisa, protestam numerosas organizações científicas. Declara Rafael Reif, presidente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o icônico MIT: "Pouco importa ser paquistanês, somaliano ou de onde for, os cientistas consideram do mais alto proveito o intercâmbio entre pesquisadores". James Appleby, dirigente da Sociedade Norte-americana de Gerontologia: "Uma boa parte das grandes descobertas são o fruto da colaboração entre pesquisadores do mundo inteiro".

As condições estão postas para que os cientistas entrem resolutamente na política, e eles começam a fazê-lo. (1) Em dezembro último, 400 pesquisadores percorreram ruas de São Francisco por ocasião da conferência da Associação Geofísica Norte-Americana, para dizer não à política de Donald Trump de menosprezo das mudanças climáticas. (2) Bill Foster é um físico norte-americano convertido à política: "No domínio da ciência, se alguém diz qualquer coisa que não é comprovadamente verdadeira, é o fim de sua carreira. Ao contrário, é perturbador ver os políticos tão pouco preocupados com os fatos reais. A política precisa voltar a ser crível". (3) A associação californiana Ação 314 -- a denominação é em referência ao número matemático p -- congrega cientistas, Ela é um foro de discussões com o objetivo de incentivar os homens e mulheres de ciência a engajar-se na política. (4) Para Aaron Parsons, especialista em radioastronomia da Universidade de Berkeley - Califórnia, os cientistas têm o dever de tomar a palavra: "Os políticos vieram nos provocar. Chegou a hora de dar-lhes resposta". (5) E não nos esqueçamos das grandes manifestações políticas programadas para o Dia da Terra.

Posso estar enganado, e espero estar, mas parece que o Dia da Terra passará em branco no Brasil. Lamentável.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Os Cidadãos Caetano & Gil



Os simbióticos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil -- "Caetano & Gil" é sugestivo da simbiose -- são minhas referências da música popular brasileira [completadas com Noel Rosa, Luiz Gonzaga e Chico Buarque]. Mas não é do artista que aqui trata-se, e sim do cidadão. Como pensam as brilhantes, férteis e argutas cabeças de Caetano & Gil face a variadas dimensões do viver humano? Vai-se a esboços de resposta, baseados principalmente em recente entrevista de Caetano & Gil ao jornal Folha de São Paulo.

O jeito Caetano & Gil de comunicar. 
Caetano leva a dialética ao paroxismo. Suas 'verdades' quase sempre admitem a negação delas. Emblemáticas disso são suas frequentes frases terminando por "..., ou não!".  

O jeito de falar baiano é geralmente volteado, estilo rococó -- baianêsGil costuma se expressar em baianês rococó (ou em exagero de baianês). Soa delicioso, mesmo  que às vezes disperse o entendimento. 

Religião. 
Caetano se considera ateu, ou não! Faz um sinal da cruz quando um avião manobra para decolar. Suas residências em Salvador e Rio de Janeiro exibem fotos ampliadas de imagem de N. S. da  Purificação (padroeira da cidade natal, Santo Amaro da Purificação). As superstições ajudam a aguentar o total descontrole do futuro. Em comum com a filosofia, as grandes religiões são esforços humanos para encarar nossa frágil condição. Ao mesmo tempo que adora o ateísmo! Louvação do Ser terreno, e reação à hipocrisia dos 'religiosos'.

Gil é agnóstico. Bem que tenta acreditar em Deus, porém não é empreitada fácil: "Se eu quiser falar com Deus tenho que caminhar decidido pela estrada, que ao findar vai dar em nada ["nada" repetido treze vezes] do que eu pensava encontrar" (de sua composição Se Eu Quiser Falar com Deus). Deus é tudo aquilo que está fora de nosso alcance. O que Deus precisa é se livrar das religiões, as quais tentam manipulá-lo até à selvageria. "Nietzsche dizia que Deus está morto. Caetano disse que Deus está solto. Tô com Caetano".

Política e Economia.
Caetano, implacável com a esquerda. Dilma é medíocre, seu governo foi péssimo. O ingênuo plano Dilmantega (Dilma + Guido Mantega, Ministro da Fazenda) levou o país ao buraco. Lula usa e abusa do PT. A esquerda é conservadora, incapaz e preguiçosa. As revoluções que deram sempre em autocracias. A aleivosia pequeno-burguesa de que a classe média é o inimigo.

Caetano também não é nada condescendente com o atual governo, que ele diz "golpista". O discurso das reformas de Temer é o pouco a pouco e a prazos longuíssimos. Agradaria somente aos poucos que já têm relativamente muito.

Gil, carregando no baianês rococó. A dimensão política está minada. O que manda mesmo no mundo é o afã do materialismo.

Sobre a guinada conservadora.
Gil busca as causas raízes do fenômeno neo-conservador. Os magnos lemas das grandes revoluções -- Liberdade, Igualdade, Fraternidade -- perdem para o materialismo embrutecedor. Acumulação de riquezas em detrimento da distribuição. Cada vez mais consumo, ostentação e luxúria. (Outra vez, Gil imerge no baianês rococó.)

Caetano é todo objetividade. Temer é anacrônico, lembra um político dos idos de 1953. Trump é o pop retrógrado.

A tropicália brasileira. Os nordestinos têm veneração por Lula, enquanto namoram Jair Bolsonaro (nosso imitador de Donald Trump, ainda mais assustador do que o original). Fernando Henrique Cardoso é cada vez mais visto no mundo de Renan Calheiros e Romero Jucá.

Filosofia e antropologia. Para Caetano, "As Palavras", de Jean-Paul Sartre, é o melhor livro já escrito. A efusão da liberdade nos textos de Sartre e Simone de Beauvoir ecoa em seu espírito. Aprende também a superar novas dificuldades existenciais com o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro. (Alguns ensaios antropológicos de Viveiros de Castro: "O Medo dos Outros", "A Inconstância da Alma Selvagem" e "Há Mundo por Vir?".)

Homossexualidade e homofobia. "Hoje, o  que mais penso é em como a homofobia de Oswald de Andrade não me causou repulsa, enquanto tudo que há de veado em Mário [de Andrade] nunca me atraiu" - Caetano. (Oswald de Andrade e Mário de Andrade -- sem parentesco -- foram os principais intelectuais do Movimento Modernista brasileiro, agitação cultural ocorrida na primeira metade do século passado.)

Ser ou não ser literato. Caetano incursionou fugazmente pela literatura com a publicação, faz vinte anos, de "Vereda Tropical". É um misto de livro de memórias, autobiografia e ensaio. Com tanta mistura, resultou em uma obra confusa, que não pegou. Caetano honestamente o reconhece, e afirma: se fosse para uma nova edição -- coisa que não o anima e que não está nos planos do editor --, ele revisaria praticamente tudo.

A arte e a cidadania de Caetano & Gil fazem bem ao Brasil. Longa vida a eles!

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Os Filósofos, Onde Estão



A crise da humanidade não é só política e econômica: é de ideias, a crise mãe de todas. E quando é mister amparar-se de filosofia, recorre-se de imediato a pensadores franceses, como não? As Lumières brilharam na França como em nenhuma outra parte. Descartes, Voltaire, Diderot e Rousseau despertaram o mundo todo para as ideias universalistas, progressistas e racionais. A Revolução Francesa foi o farol para os libertadores do planeta inteiro. Mais recentemente, ao longo dos três primeiros quartos do século XX, os intelectuais franceses  -- de Jean-Paul Sartre e Camus a Jacques Derrida e Pierre Bourdier -- explicaram como ninguém a conturbação das guerras mundiais, a impulsão e as fissuras dos comunismos, o ocaso do colonialismo. Sempre aprofundando e iluminando, cada um a sua maneira, os valores implícitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Filósofos da esperança, malgrado tanto horror.

Nossa época  -- último quarto do século XX e começo do século XXI -- é terrível porque engendra a desesperança e o vazio existencial. A trindade universalista  e progressista Liberdade-Igualdade-Fraternidade parece agora um dístico morto. Apoiar-se em quem, para compreender e reagir? Bernard-Henri Lévi? É o filósofo da desconstrução dos [grandes] filósofos, como se errar (às vezes, até muito) não fosse humano. Não, este intelectual da negação é infecundo.

Sudhir Hazareesingh é membro da Academia Britânica,  historiador e especialista em história política da França. Ele aponta duas causas principais da decadência da filosofia francesa: o descrédito dos regimes comunistas e a tecnocracia*,

Os grandes pensadores franceses do século XX eram majoritariamente de esquerda não-comunista. Mas não resta a menor dúvida de que a derrocada do regime soviético desconcertou, e como. As ideias mestras da esquerda francesa nunca deixaram de ser subjacentes aos princípios marxistas. Com a mesma velocidade da implosão do comunismo na Rússia e na Europa Oriental, as certezas se esboroaram. Sobrou o compromisso republicano, todavia um conceito de república sem significados precisos, salvo o patriotismo. Perigosa brecha para uma aproximação, ao menos retórica, com o nacionalismo populista e intolerante de extrema direita. Universalismo em baixa. Quais intelectuais contemporâneos ocupam a nova cena do nacionalismo republicano? Alain Finkielkraut, Renaud Camus, Florian Philippot. Este último é o guru de Marine Le Pen (sic). Eles todos destoam da grande tradição generosa e racional da filosofia francesa clássica e moderna (isto é, até Jacques Derrida e Pierre Bourdier). Felizmente por certo, são ilustres desconhecidos fora do cenário francês.

A maioria da elite intelectual francesa é egressa da Escola Normal Superior (ENS), a veneranda instituição do saber humanístico. Sartre, Foucault, Bourdieu e Derrida são todos normalistas. A ENS entrou em declínio por decisão política do Estado francês. Desde o advento da Quinta República de Charles de Gaulle (1958), as cabeças mais brilhantes têm se orientado para as instituições tecnocráticas doravante mais prestigiadas, tais como a Escola Politécnica e a Escola Nacional de Administração. Uma espécie de transição tecnocrática quanto à formação da intelectualidade. (Ressalte-se que a pretensa incompatibilidade humanismo vs. tecnocracia não resiste aos fatos. Por ininterruptos trinta anos desde o fim da segunda guerra mundial, a França viveu o apogeu de seu crescimento econômico -- Os Trinta Gloriosos. Da mesma forma, trinta gloriosos anos da ENS.)  Alto e bom som, a tecnocracia usurpou a filosofia. Quem lê filosofia francesa contemporânea?

A cultura universalista e prospectiva -- especificidade francesa -- se retrai. Passa a prevalecer a visão americana ou anglo-saxã do mundo: desnudada de componente inquiridor, centra seus valores imediatos no poder político, na economia de mercado e no individualismo. Humanidade sem filosofia, ilusões perdidas.


*- Entrevista concedida ao jornal online londrino Spiked -- spiked.com --, publicada em 01/02/2017.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Concentração de Renda no Mundo Desenvolvido



A crise econômica mundial se aprofunda, com o crescimento das desigualdades infestando também os países desenvolvidos. Resultado de políticas econômicas socialmente desastrosas por parte da governança global, aferrada a conceitos ortodoxos de (injusta cobrança de) mais impostos e de cortes de despesas públicas essenciais. O tema do artigo é justamente a concentração de renda no mundo desenvolvido.

Nada clarifica melhor do que estatísticas. A métrica é o Coeficiente de Gini, que mede a repartição de riquezas em uma dada economia, da igualdade perfeita (valor 0) à desigualdade total (valor 1). Foi definido em 1912 pelo sociólogo italiano Corrado Gini (1884-1965). O quadro abaixo mostra a evolução das desigualdades de renda em países desenvolvidos, no período 1985-2010, aferida pelo Coeficiente de Gini.
Observe-se em primeiro lugar a grande e crescente deterioração social do conjunto China (Chine, em francês) - Hong Kong*, salvo um ligeiro decréscimo na China, a partir de 2005. O capitalismo estatal chinês, em aliança com os grandes empresários privados amigos do poder, faz água. Em seguida, vêm Alemanha (Allemagne), Suécia (Suède) e  Estados Unidos (États-Unis), os três países exibindo um acentuado aumento das desigualdades, a mais nos dois primeiros. A ordem melhor-pior país em 2010 é: Suécia, França (France), Alemanha, Reino Unido ((Royaume-Uni), Estados Unidos e China. Ainda em primeiro, a Suécia caminha célere para perder a posição, se mantidas as tendências.

Eis um eloquente exemplo da perda de renda dos trabalhadores norte-americanos. Há cinquenta anos, quando a General Motors era o primeiro empregador dos Estados Unidos, seus empregados, amparados por um sindicato forte, ganhavam o equivalente a 35 dólares atuais por hora. Hoje, o maior empregador é Walmart, e o assalariado da Walmart, sem sindicato, não ganha senão 9 dólares por hora. O que faz a falta que um bom sindicato! Como e por que os trabalhadores se desmobilizaram, taí um ótimo tema para estudo.

The Guardian de Londres, 11/09/2015. Em Baltimore ou Washington nos Estados Unidos, em Glasgow ou Newcastle no Reino Unido, a esperança de vida de uma criança nascida em um bairro pobre é inferior em vinte anos àquela de um rebento dos bairros ricos. A situação sócio-econômica e o estado de saúde são estreitamente ligados: os mais ricos podem esperar viver oito anos a mais (com boa saúde) do que o cidadão médio. (Sobre a queda da qualidade de vida na Alemanha, ver A Alemanha Vista de Dentro neste blog, em 08/05/2015.)

A França merece um destaque especial, positivo. É o único país desenvolvido em que a desigualdade diminuiu no período 1985-2010, com o coeficiente de Gini se mantendo estável desde o ano 2000. Um duro golpe nos detratores do estado providência, ou nos defensores do estado mínimo. A manterem-se as tendências de 2010, e tudo indica que sim, a França caminha para ser a sociedade mais igualitária dentre os países pesquisados.

Perdas para muitos, ganhos para uns poucos. Os miliardários surfam sobre a crise econômica "dos outros". O quadro em seguida é a classificação dos dez primeiros países por patrimônio líquido de seus miliardários. O 'enxerido' Brasil está aí, ocupando o sétimo lugar (seu coeficiente de Gini, na faixa 0,50-0,55, é bem pior do que o da China).

Dados dos miliardários de alguns destes países -- <número de miliardários, patrimônio líquido em % do PIB, patrimônio total em bilhões de dólares> --, em março de 2014: Estados Unidos <492, 13,9%, 2.300>; Rússia <111, 20%, 422>; Alemanha <85, 11,2%, 401>; China <152, 4,2%, 375>; Brasil <65, 8,7%, 192>; Índia <56, 10,9%, 192)>. Assustador.

O pesquisador Anthony Atkinson, da London School of Economics, não vacila em proclamar: "Restauremos o Estado Providência!". Apoia-se no mau exemplo do Canadá (sic): as restrições às políticas de redistribuição levadas a efeito pelos últimos governos conservadores explicam a permanência de taxas elevadas de pobreza no país, com mais de uma pessoa dentre oito vivendo com baixa renda. Mesmo Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, estima que as desigualdades ameaçam a estabilidade do sistema econômico mundial. Bernie Sanders, aspirante a candidato à presidência norte-americana, apresenta-se com um programa carregado de tintas socialistas (!), empolgando destarte a grande maioria do eleitorado jovem do Partido Democrata. Alguns milionários norte-americanos até se oferecem para pagar mais impostos!

Torna-se evidente que o combate político dos próximos anos não terá a ver com esquerda vs. direita. Ocorrerá que os pobres e empobrecidos desafiarão as elites políticas e econômicas socialmente insensíveis. Movimento Occupy Wall Street, partido alternativo Podemos (Espanha) e Bernie Sanders são exemplos significativos: só mobilizações amplas forçarão a quebra dos paradigmas vigentes de desenvolvimento anti-social.

Enche o saco essa coorte de jornalistas econômicos, passionnés do grande capital financeiro, que tecem loas à 'recuperação' das economias dos Estados Unidos e da Alemanha, e desprezam a 'estagnação' da França e do Japão. Recuperação de quem, caras pálidas? Botai índice Gini em vossas análises!


*- Hong Kong aparece separada da China porque é uma província chinesa que ainda goza de autonomia administrativa frente ao poder central de Pekin.


Fonte das estatísticas - Courrier international, 05-11/11/2015.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Direita Alternativa



A direita alternativa (alt-right) é um vasto amálgama de movimentos nacionalistas e xenófobos prosperando nos Estados Unidos. Responsável direta pela ascensão de Donald Trump à presidência, insurge-se contra a direita tradicional 'vacilante' (Partido Republicano, The Wall Street Journal, ... ) ante o canto da sereia 'esquerdista' (Partido Democrata, The New York Times, The Washington Post, ... ). Trata-se de um fenômeno extremista norte-americano com a ressalva que, em se tratando da maior potência planetária, pode influenciar o mundo todo. Preocupação geral. Na continuação, comentam-se quatro emblemáticas fontes difusoras de ideologia alt-right.

O Center for Immigration Studies (CIS) é um centro de pesquisa sobre imigração cujo fundador é conhecido por ser "um cruzado anti-imigração". Um relatório recente do CIS sobre a educação básica não nuança suas posições hostis à imigração, certamente com "fatos alternativos" em apoio. Eis cinco diabretes do relatório. (1) Em 2015, quase 25% dos alunos das escolas públicas eram rebentos de "família imigrante"; em 1980, a proporção não passava de 7%. Rumo à ocupação integral da escola pública por não norte-americanos. (2) Ao longo dos últimos decênios, a classe política escancarou as portas à imigração, em flagrante desrespeito às leis concernentes: esta política negligente traz consequências altamente negativas para a qualidade do ensino público. (3) A imigração fez aumentar o número de crianças pobres ou falando uma língua estrangeira nas escolas públicas, o que constitui uma grave dificuldade suplementar ao desempenho da educação pública. (4) Fechando os olhos para a imigração clandestina. o establishment compromete seriamente o futuro das crianças norte-americanas. (5) Os infantes norte-americanos têm suas próprias vidas em perigo constante: em 16 de novembro de 2010, Joshua Wilkerson foi torturado e assassinado por um colega de classe imigrante clandestino.

O ultra conservador site Breitbart -- breitbart.com, 23 milhões de visualizações em novembro de 2016 -- é useiro e vezeiro em publicar artigos misóginos, xenófobos e racistas. Com a intenção de implantar-se também na França, e acintosamente ao lado da candidatura presidencial de extrema direita de Marine Le Pen, traça um quadro apocalíptico do país das Lumières, distorcendo premeditadamente os fatos. Manchetes e artigos à beira da histeria. Quatro títulos: (1) Paris transformada em zona de guerra por causa da violência dos migrantes, unidos à extrema esquerda para atacar a polícia parisiense; (2) Marine Le Pen brada para salvar a ameaçada civilização francesa; (3) Pesquisas preveem uma vitória contundente de Marine Le Pen, no primeiro e no segundo turno das presidenciais francesas; e (4) Le Pen ganha o debate entre os candidatos, com uma postura patriótica e combativa.

Fox News -- 65 milhões de audiência mensal -- é o canal de notícias mais visto dos Estados Unidos, bem longe à frente do rival CNN. Seu apresentador Sean Hannity é um hábil manipulador ideológico de extrema direita, adepto da teoria do complô e da irradiação de falsidades como a de que o ex-presidente Obama não seria norte-americano. Ultimamente, Sean Hannity tem vituperado contra os juízes que revogaram decretos de Trump: não passam de joguetes da "esquerda alternativa radical", segundo suas palavras. E acusa, desprezando a verdade: "Se a esquerda alternativa radical insiste em solapar as medidas do presidente [Trump] para garantir a segurança dos americanos, essa gente sujará as mãos de sangue. A nação a responsabilizará."

O site Infowars -- infowars.com, 8,2 milhões de visitantes em março de 2017 -- é a vitrine internet do célebre animador de rádio e produtor texano Alex Jones. Ligado  ao  lobby das armas, ele é notadamente conhecido por ter propagado que o massacre ocorrido na escola primária Sandy Hook, em 2012 (28 mortos, entre os quais 20 crianças), foi um embuste. Quando de sua recente visita aos Estados Unidos, a chanceler alemã Angela Merkel não perdeu a oportunidade de alertar Trump sobre os perigos do fechar-se ao mundo. Ferozmente nacionalista, Alex Jones passou a seus ouvintes uma versão grosseira e fantasiosa do encontro dos dois líderes, chegando ao despautério de dizer que Trump dera uma lição de valores norte-americanos a Merkel, "destruindo suas baboseiras pró-globalização".

À guisa de conclusão. A ascensão impetuosa da direita alternativa se dá na razão direta do fracasso das políticas do establishment em lidar com a massa crescente dos marginalizados sociais. Nos Estados Unidos e alhures, As desigualdades se aprofundam, a produtividade e os salários estagnam, a criminalidade e a toxicomania aumentam de forma avassaladora, as dissenções sociais se agravam. A desconfiança face ao poder político é quase total. Só resta às elites rever profundamente sua governança, se o objetivo for apagar para valer o incêndio extremista. Pelo andar da carruagem, certeza zero de que o farão. (A União Europeia, frente aos tsunamis do Brexit e do caos grego, ensaia um grande mea culpa reformista. Será?!) Adaptando à situação um conhecido provérbio, "Quem pariu a Direita Alternativa, que a embale".

sexta-feira, 24 de março de 2017

O Agronegócio na Berlinda: Além da Carne Fraca



Aos sugestionáveis, o poderoso lobby do agronegócio brasileiro impunha a ideia de que era o setor exemplar da economia: modernizador do campo, maior gerador e mantenedor de empregos, principal exportador, padrão de qualidade internacional. Ambição de tornar nosso país o maior produtor mundial de carne e soja. Comanda a armada ruralista o mais poderoso barão do campo, o Ministro da Agricultura Blairo Maggi. Bilionário da agroindústria, é o "Rei da Soja" e dirige o grupo Amaggi, líder planetário de soja.

Eis que a Policia Federal, com sua Operação Carne Fraca, joga muita água na fervura do negócio agropecuário. O setor não escapa da corrupção endêmica que assola o Brasil. As primeiras ações preventivas para tentar estancar os malfeitos vindos à luz: vinte e um frigoríficos de grandes marcas proibidos de exportar carne com suspeição de podre (para o mercado interno pode, não é Sr. Maggi, quanto desrespeito e desprezo pelo povo brasileiro); dois superintendentes do ministério -- nomeados pelo Sr. Maggi -- e dezenas de fiscais demitidos ou afastados. Como sempre, a tática de defesa é diversionista: tratar-se-ia de problemas pontuais, o que não justificaria o 'estardalhaço' da Polícia Federal. Não vai colar, Sr. Maggi e Sr. Temer, o povo brasileiro começa a tomar consciência de cidadania.

Feita esta abertura sobre a carne fraca, o tema principal do artigo são as graves agressões à natureza engendradas pela pecuária extensiva e pela cultura em escala industrial de oleaginosas. O que se passa no Brasil e na Argentina, os dois gigantes sul-americanos do agronegócio?

Mato Grosso, estado amazônico com mais de 900.000 km2 -- quase duas vezes a França --, tem se transformado, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, em uma imensa plantação de soja, às custas de desflorestamento desenfreado e destruição do cerrado. Entre 1991 e 2016, a área plantada no Estado passou de 1,2 para 9,4 milhões de hectares.  Apesar dos protocolos firmados entre o governo federal e a indústria agroalimentar no sentido de frear o desmatamento, este prossegue via práticas ilegais e corrupção. (É mais que oportuno lembrar: antes de Ministro da Agricultura, Blairo Maggi foi senador de Mato Grosso pela gambiarra da suplência, e depois governador do dito Estado. Foi 'agraciado' pela ONG Greenpeace com a "Moto serra de Ouro".) O pantanal mato-grossense, maior viveiro de fauna e flora do mundo, vive um nefasto processo de assoreamento, por conta da crescente quantidade de matéria em suspensão trazida pelos rios que perdem a proteção ciliar de suas margens. As chuvas escasseiam na amazônia mato grossense, o calor aumenta, as queimadas naturais ou provocadas debilitam as florestas ainda poupadas pelas moto serras dos homens. Tragédia conscientemente ignorada pelo oba-oba dos ruralistas.

O agronegócio da Argentina se concentra no Pampa, uma extensa região que compreende as províncias de Córdoba, La Pampa, Santa Fé e parte da província de Buenos Aires. Fértil, pluvioso e plano, antes do boom da indústria agroalimentar o pampa consistia em florestas e também matas ralas próprias para pastagem -- o equivalente brasileiro do cerrado. Hoje, é como se restos de floresta procurassem um 'cantinho' que seja para sobreviver: predominam à larga tanto enormes plantações de soja quanto pecuária extensiva bovina. Como o Brasil, a soja e a carne são os principais itens da pauta de exportação argentina.

Pasmem, o negócio agroindustrial fez da Argentina a líder mundial de desmatamento (!) (sic). A natureza se vinga, implacável. Considerem-se áreas iguais de floresta natural, pastagem e campo de soja: em comparação com a primeira área, a segunda absorve três vezes menos água de chuva, a terceira dez vezes menos. O lençol freático do pampa, que se encontrava a dez metros de profundidade, está agora a menos de um metro da superfície: os solos saturados não podem mais absorver a água das chuvas (Fonte: Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária, da Argentina). Inundações catastróficas se repetem várias vezes a cada ano. Diques são construídos para impedir a inundação de cidades, mesmo em ausência de chuva. O pampa fica literalmente coberto de água por muito tempo fora da temporada chuvosa, causando imensos prejuízos aos produtores de soja e pecuaristas. Sem falar da esterilização dos solos por excesso de água e por pesticidas, e dos danos na estrutura de transportes.

Nos primórdios da derrubada de florestas, os magnatas do agronegócio esnobavam os ecologistas que alertavam para as implicações do desmatamento no aquecimento global. À maneira Trump, tachavam os ecologistas de chatos alarmistas. Face às calamidades dos tempos atuais, a 'culpa' não é do modelo agroindustrial vigente, mas das mudanças climáticas. Haja hipocrisia.

E pensar que tudo poderia bem se arranjar: carne forte, soja saudável e natureza no essencial preservada. Infelizmente, confiar na racionalidade dos homens é espera inglória.

sexta-feira, 17 de março de 2017

Falsos Cognatos



"Eu conheço o Brasil há sessenta anos. Ele sempre me surpreendeu, por vezes frustrou, mas nunca me decepcionou", assim falava o francês Gilles Lapouge (1923 - ) lá pelos idos de 2011. Escritor e jornalista, colabora com o jornal O Estado de São Paulo desde 1951. Viveu integralmente no Brasil de 1950 a 1953, e as revisitas não se contam. Aproveitou para esquadrinhar nosso país de norte a sul e de leste a oeste, tudo registrado no culto, brilhante e saboroso Dictionnaire amoureux du Brésil ("Dicionário dos apaixonados pelo Brasil"), cuja primeira edição brasileira apareceu em 2014. Do dicionário, explora-se aqui o 'verbete' "Falsos Cognatos", sobre vexames de aprendizado do então neófito em português. (Ver também "Proust nas Favelas" em O Brasil de Gilles Lapouge, postagem de 23/04/2015.)

Em uma recepção no consulado da França, uma brasileira perguntou a Gilles Lapouge se ele andava sempre constipado (no sentido de resfriado). Lapouge reagiu mecanicamente: "não, não" -- em francês,"constipation" só tem um significado: prisão de ventre --, ante o olhar incrédulo e jocoso da moça. Mas a dúvida se lhe instalou. Devia procurar um médico? Por quê, se não sentia cólicas nem mal-estar? O filósofo Voltaire pode lhe ter ocorrido: se a 'borra' não desce então sobe [para a cabeça]. Estava com semblante enfezado (no sentido etimológico), por certo. Por fim, um vizinho o tranquilizou: estrangeiros recém-chegados tendem a ficar constipados, a se resfriar, de tanto ultrapassar paralelos e longitudes, quiçá oceanos.

Eis que Gilles Lapouge passa diante de uma mercearia, com o cartaz afixado: "Fechado por motivo de luto familiar". Ele ficou ao mesmo tempo embasbacado e estupefato. Dois irmãos em luta de foice? Ou marido e mulher em "pega prá capar"? Levaram a coisa bastante longe: não só fecharam a loja como também deixaram claro o desentendimento a toda a vizinhança. Lapouge não podia deixar de admirar a maneira como esses comerciantes enfrentavam seu destino e mantinham as pessoas ao corrente de sua desavenças. Na manhã seguinte, a mercearia estava aberta, para seu conforto: adora banana e doce de leite. Pasmado, ficou então sabendo que, em português, luto não quer dizer "lutte", isto é, luta, mas recolhimento pela morte de alguém.

Num certo dia, Gilles Lapouge caminhava apressado sob forte chuva, os cabelos colados na cabeça. Uma moça cutucou a amiga ao lado, em voz alta de ser ouvida: "Olha que rapaz esquisito!". Lapouge se sentiu vaidoso, ego inflado -- "exquis", palavra francesa que quer dizer requintado, fino, sofisticado. Em bom português: excêntrico, extravagante e pior, até feio, de mau aspecto. Fácil imaginar a decepção de Lapouge e o prestar-se a zombarias dos amigos.

Gille Lapouge leva a pensar em minhas peripécias quando aprendiz de francês. Por exemplo, o falso cognato "pourtant": não é "portanto" como parece, e sim "todavia, no entanto". "Adoro futebol, "pourtant" [todavia] sou um torcedor", decididamente não dá. E o gênero de numerosas palavras? Arranham nossos ouvidos lusófonos "a "mer" [mar]",  "a "banque" [banco]", "o "tapioca" [tapioca]", "o "Venezuela" [Venezuela]". Tem ainda o por vezes 'misterioso' pronome "en". E outras coisas mais. Ficaria tudo para um outro artigo.

Cansativos e perturbadores os primeiros tempos de Gille Lapouge no Brasil, e os meus na França? Bem ao contrário, foram experiências altamente estimulantes, malgrado os percalços. A cada dia, um obstáculo vernacular vencido, animação crescente: admirável mundo novo. Meus filhos pré-adolescentes à época, que alegria vê-los inteiramente à vontade em questão de poucos meses: como não tinham vergonha de errar, assimilaram a nova língua muito mais rápida e eficazmente do que eu, adulto com orgulho besta.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Desemprego e Emprego Precário



O Brasil econômico: queda do PIB de 3,8% em 2015, e de 3,6% em 2016; taxa de desemprego se aproximando de 13%, com tendência de não arrefecer. Lamentavelmente, as respostas a "Como sair da pior recessão de nossa história?" não são um projeto de nação: uma reforma da previdência que só enxerga superavit, uma flexibilização do trabalho que dispensa as leis e a justiça do trabalho, uma reforma tributária que taxa os pobres e livra os ricos. Como tão bem resume Clóvis Rossi, em seu artigo na FSP de 05/03/2017, as expectativas que mudaram foram as do tal de mercado.

Como tem se dado o debate sobre crise econômica nos países europeus que nos são paradigmáticos? Leve-se em conta, em todos eles menos a Itália, a diminuição ao menos momentânea do desemprego (ver a tabela abaixo, por ordem crescente de taxa de desemprego em 2016).  


Tanto nos países onde o desemprego não chega a ser propriamente um drama -- os quatro primeiros da tabela -- quanto naqueles com alto desemprego -- os três últimos --,  o que se entende verdadeiramente por crise inclui também a existência tanto de empregos precários quanto de desamparo social. Como se vê, discussão diametralmente oposta à que ocorre no Brasil. Aos detalhes, país por país.

República Tcheca. Praticamente, o país do pleno emprego. Surpresa? Nem tanto. A indústria tcheca é tradicionalmente sólida. À parte sua reputada marca automobilística Skoda, a manufatura de artefatos finos de desenho não tem rival em qualidade. A cadeia globalizada de produção funciona assim: madeira dos Estados Unidos; na China, a madeira é cortada em pranchas; a madeira pranchada segue para Hamburgo, Alemanha; de Hamburgo para a transformação em objetos de desenho na República Tcheca; escoamento da produção principalmente nas papelarias norte-americanas. O problema? A baixa remuneração da mão-de-obra tcheca. O poder de compra do salário médio não representa senão 59% da média européia. As empresas financeiramente saudáveis são incentivadas de diversas formas a aumentar os salários de seus empregados, visando gradativamente à paridade com os salários da União Europeia.

Alemanha. A grande discussão das eleições ao parlamento que se darão em setembro próximo -- o regime político é parlamentarismo com presidente simbólico -- é o questionamento das leis de flexibilização do trabalho levadas a efeito pelo chanceler Gerhard Schröder, em 2010. Mais justiça social na Alemanha é o tom das campanhas dos candidatos à chancelaria.  Três pontos cardeais: aumento da duração máxima do salário-desemprego, que foi reduzida por Schröder de trinta e dois para dezoito meses; revisão da política de salário mínimo;  e estabelecimento de um teto para os salários e bônus dos dirigentes de empresa.  

Reino Unido. À primeira vista, tudo parece ir muito bem: a taxa de emprego -- proporção de pessoas em idade de trabalhar efetivamente trabalhando -- atinge um nível recorde; o desemprego está no mais baixo índice dos últimos dez anos; e nunca tantas mulheres participam do mercado do trabalho. De outro ângulo, porém, a visão se turva: os salários estagnam e o trabalho em tempo parcial não cessa de crescer. Em suma: apesar das aparências em contrário, a população em geral se empobrece e os serviços de saúde e educação se precarizam. A grande pauta político-econômica são propostas para superar a crescente perda de qualidade de vida dos britânicos e dos irlandeses do norte.

Suécia. O sistema sueco que norteia as relações entre empresas e empregados agrada a uns e outros: se, por um lado, as empresas têm liberdade para demitir, por outro lado os desempregados são indenizados com justiça, além de se beneficiarem com cursos de formação / reciclagem e assistência para a procura de novos empregos. A fortaleza do sistema se ancora nos acordos coletivos celebrados entre as organizações patronais e os sindicatos. Apesar de tudo isso, persistem bolsões de pobreza nas maiores cidades do país. Mas esses bastiões problemáticos não são largados ao abandono: uma agência de trabalho temporário cuida especificamente de seus moradores, atingidos pelo desemprego e pela delinquência. A ideia é tirar do buraco aqueles que não têm a formação e a qualificação necessárias, dando-lhes a chance de mostrar de que eles são capazes. E tem funcionado: é mesmo a principal razão da inflexão do desemprego (ver a tabela).  

França. O desemprego na França, sempre em torno de 10%, é portanto crônico. Não se trata porém de recessão continuada, mas de estagnação. A tradição industrial francesa se acha solidamente fincada na arena internacional: as empresas são financeiramente saudáveis e inexistem demissões em massa. O problema todo é que elas não contratam, ou contratam pouco, optando por investir em altas tecnologias. Do ponto de vista da nação altamente politizada, o desemprego é uma chaga que precisa finalmente ser tratada para valer. Não dá outro assunto nas campanhas às eleições presidenciais que se avizinham. O leque de propostas é amplo: redução da pressão fiscal sobre o trabalho; enxugamento da máquina burocrática estatal visando a investimentos; concentração dos investimentos em energias renováveis e na formação de jovens e desempregados; taxação dos robôs industriais; e renda mínima universal. (Infelizmente, há que registrar outrossim as ideias falsas, xenófobas e racistas segundo as quais os imigrantes e os franceses que não são de souche são os responsáveis pela 'decadência' da França.)

Itália. Único país da União Europeia onde o desemprego aumentou em relação a 2015 (ver a tabela), a Itália vive dias politicamente tensos. Para conter o desemprego, vigora o Jobs Act, que flexibiliza o mercado de trabalho no intuito de incentivar as empresas a contratar, o que não está ocorrendo. A pressão aumenta, o Jobs Act é extremamente contestado: três milhões e trezentas mil assinaturas pedem um referendo para revogar o artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, que regula as demissões sem justa causa. A consulta vai ocorrer, a menos que o governo se antecipe ao desgaste e modifique a lei em proveito dos trabalhadores.

Espanha. O cenário espanhol é muito parecido com a da Itália, com o agravante que o desemprego, de espantosos 26% faz três anos, se encontra ainda em estratosféricos 18,4%. O grosso da opinião pública brada que é preciso reformular com urgência a "legislação de sobreviva" -- uma reforma da reforma --, com o objetivo de reduzir a precariedade dos empregos e aumentar os salários.

De volta ao Brasil. O antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro (1922 - 1997) dizia que nossas elites são as mais egoístas do mundo: tal a Dona Bela de Chico Anysio, "só pensam naquilo [seus exclusivos interesses]". Darcy Ribeiro permanece plenamente atual.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Universidade de Massa



Em meu tempo, a universidade era de elite. Predominavam as universidades federais públicas e gratuitas. Poucas vagas e vestibulares extremamente seletivos. Ao tempo em que o ensino médio público era criminosamente abandonado pelo Estado. Praticamente, só os abonados ascendiam ao ensino superior: implicava ser egresso dos melhores colégios particulares e dos mais cotados e caros cursinhos preparatórios. (Existiu, por breve período, um cursinho de primeira e de graça chancelado por uma empresa estatal: fui um de seus privilegiados alunos bolsistas.) As vagas dificilmente eram preenchidas na totalidade: boas notas no vestibular eram um imperativo. (Um exemplo eloquente: meu exame de admissão à Escola de Engenharia preencheu apenas 23 das 40 vagas.) Superada a guerra de seleção, o melhor dos mundos: boas universidades e de graça, excelentes alunos, mercado contente com o elevado nível dos formados. Handicaps: altíssimo custo per formando; e descompasso oferta (pequena) de recém-formados - procura (grande).

Hoje, é universidade de massa. Aberta a todas as classes, com muitos estudantes saídos também do ensino médio público. As universidades federais oferecem bem mais vagas. Mesmo assim, no cômputo geral o sistema educacional superior se tornou predominantemente privado. (Para a tranquilidade dos empresários da educação, os alunos sem recursos são financiados pelo programa estatal FIES, o qual no entanto se encontra à beira do esgotamento por elevada inadimplência.) Salvo destacadas exceções, o ensino e a pesquisa nas universidades de massa deixam muito a desejar: quantidade não rimando com qualidade. Apenas uma parte relativamente modesta dos alunos consegue ser assídua e interessada. A maioria tem que trabalhar e servir-se de transporte público precário: nos bancos de faculdade, é a luta para não cair de sono e cansaço. O dessintonia universidade - mercado é de novo tipo, seja por excesso de formados em certos nichos de conhecimento seja por carências de formação. De todo modo, esqueça-se a universidade de elite: a agenda imperiosa é a de ajustar e qualificar a universidade de massa.

Umberto Eco (1932 - 2016), o conhecidíssimo romancista italiano de O Nome da Rosa, foi também professor-pesquisador e diretor da Universidade de Bolonha. Ele reconhecia a inevitabilidade da universidade de massa. Dedicou a ela um importante e pequeno livro, Como se faz uma tese. Um guia autorizado de preparação de boa tese, no ambiente pouco estimulante frequentemente encontrável em universidades de massa. "Tese" para Umberto Eco é abrangente: pode se referir a pós-graduação -- tese de doutorado e dissertação de mestrado -- ou ainda a monografia de final de curso de graduação. (A ordem crescente de dificuldade é monografia - dissertação - tese. Por falta de espaço, as diferenças são omitidas: o que interessa aqui são as tarefas comuns a todo trabalho de tese.) "Orientador" é pesquisador que orienta tese. "Orientando" é aluno que elabora tese.

Os pontos cardeais de um orientando, vis-à-vis do bom desenrolar de sua tese, podem se resumir a quatro: (1) tema de interesse; (2) boas fontes de consulta; (3) cultura à altura de bem apreender as leituras; e (4) consistente plano de trabalho.

O orientador adoraria que o orientando revelasse autonomia no desenvolvimento de sua tese, já que na certa o primeiro vive sobrecarregado de tantas aulas e outros orientandos. O tema é do orientando (item 1). Na medida do possível, o orientador deve propiciar ao orientando boas condições de trabalho: se a biblioteca local é insuficiente, que use sua suposta influência para franquear o acesso de seu orientando a fontes externas compatíveis (item 2). Ah! Se o orientando tem formação deficiente desde o ensino médio, e ademais não é afeito à leitura, então fica-lhe muito difícil absorver a riqueza das fontes de consulta; não é papel do orientador fazer as vezes do orientando. A tese é do orientando. (item 3). O item 4, o plano de trabalho do orientando, merece o parágrafo seguinte.

Um modelo em etapas de plano de trabalho de tese se tornou canônico: título, introdução e estrutura do documento. "Um bom título já é um projeto" (Umberto Eco): não um título genérico, mas específico (o tema da tese stricto sensu). A introdução serve para mostrar ao orientador o que se pretende fazer, sobretudo evidenciar que já se tem as ideias em ordem. A estrutura é a hierarquia de níveis: capítulo - seção - sub seção - ... - esboço do conteúdo. Os capítulos em regra não passam de cinco: 1, Introdução; 2. Pesquisa Relacionada; 3. Objetivos Específicos; 4. Formalização do Tema; 5. Experimentação e Análise Quantitativa dos Resultados; 5. Conclusões. Note-se que os esboços de conteúdo valem para os capítulos 2-5.

Enquanto o orientando não for capaz de dar um título original à tese, escrever a introdução e estruturar todo o conteúdo, ele não poderá dizer que já domina sua tese. Por ser o plano de trabalho tão crucial para o êxito do orientando, é o momento de a interação orientador - orientando ser mais ou menos intensa. Após tantas revisões quanto necessárias, o plano de trabalho é finalmente aprovado pelo orientador. A partir de então, o orientando seria capaz de desenvolver sua tese praticamente sozinho.

Para a feitura dos capítulos 2-5, faz-se mister um cronograma realista. Os trabalhos de tese têm que ter data certa para terminar: nem pouco tempo, nem tempo demais. Algumas palavras concernentes aos capítulos 4 e 5. Que fique claro que um orientando não é um aluno qualquer; bem ao contrário, tem que ter a capacidade de abstração (modelagem formal) -- capítulo 4 da estrutura -- e de analisar e sintetizar dados (modelos estatísticos) -- capítulo 5. (Umberto Eco é um tanto vago em relação aos capítulos 4 e 5. Talvez porque sua experiência de orientador é com teses de humanidades. Entretanto, não parece ser questão de relaxar o rigor. Construir arcabouços conceituais sólidos e tratar corretamente dados experimentais -- coleta, análise e síntese -- são tão indispensáveis à pesquisa em humanidades quanto em ciências e tecnologia.).

Duas conclusões. Realizar uma boa tese exige do orientando organização, competência e tempo. Não é fácil, não é fácil, mas nada impede que as universidades de massa produzam boas teses em quantidade, quando então elas serão verdadeiramente universidades. Segundo, para que serve afinal uma tese? Em princípio, para tudo e para todo o resto da vida! Uma boa tese é um ótimo treinamento para tornar-se distinguível, não importa a atividade. O tema da tese é de somenos e logo esquecido.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Últimas do Supremo e Digressões Pertinentes



O peemedebista José Sarney -- ex-senhor da república do Maranhão contudo forte junto a seus antigos pares da política, do judiciário e do meio militar -- vem de ser agraciado com foro privilegiado pelo Supremo Tribunal Federal no quadro das investigações da Operação Lava Jato, sem nenhuma razão jurídica para isso. Ah sim, existiria um forte motivo, eminentemente político: o homem é um explosivo arquivo vivo sobre as futricas e conchavos dos poderosos, o qual [homem] convém manter calado.

Quando presidente do Senado, Sarney foi acusado de ocultar portarias em que distribuía cargos para parentes e amigos. Em sua defesa, o então presidente Lula soltou a dissonante e tristemente famosa declaração de apoio: "Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum". Passados oito anos, Sarney continua a ser tratado como uma pessoa incomum: o Supremo vem de impedir ao juiz de primeira instância Sérgio Moro o acesso às citações a Sarney contidas nas delações do réu Sérgio Machado.

O senador peemedebista Romero Jucá será para sempre lembrado como aquele do "É preciso estancar a sangria da Lava Jato". Apesar de, apesar de, é igualmente recebido com benevolência pelo Supremo: para ilustrar, um inquérito contra ele dorme em gavetas da corte maior há mais de 10 anos.

Jucá se sente muito confortável para expressar opinião sobre o foro privilegiado, usando uma linguagem ao mesmo tempo chula e ameaçadora: "Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba". Se vivos, os irreverentes Mamonas Assassinas ajudariam Jucá a ir fundo na suruba: "... roda, roda, roda e vira, solta a roda e vem". Solta a roda, senador.

O Supremo abriu mão de suas competências jurídicas para mergulhar de vez na baixa política à moda do Congresso. Politiquinha magistralmente exposta na obra Os Donos do Poder do jurista Raymundo Faoro, indispensável para entender nosso precário estágio civilizatório. Uma vergonha. (As poucas e honrosas exceções, em uma instituição e na outra, confirmam a regra.)

***

O respeitado historiador russo Alexandre Choubine, em sua obra de 2014 A Grande Revolução Russa: de fevereiro a outubro de 1917, se debruça sobre a seguinte questão: Por que o revolucionário Lênin, à testa de seu minúsculo partido bolchevique cuja audaciosa bandeira propugnava a extinção de todas as classes sociais salvo o proletariado, e sem contar com alianças partidárias, tomou o poder na Rússia?

Ironia das ironias, as grandes incentivadoras de Lênin, por vias transversas, foram as elites embrutecidas da Rússia de então. O último tsar, o semi-absolutista Nicolau II, só fazia concessões de caráter popular sob pressão extrema. A agitação social era tal que as elites liberais, sob o comando de Alexandre Kerensky, depuseram o tsar e o tsarismo. Na realidade, os círculos do novo poder russo, que incluíam também os conservadores e os socialistas anti-bolcheviques, jamais avaliaram corretamente a dramática situação da imensa maioria do povo russo. Sua educação e formação elitistas não o permitiam.

A cegueira das elites ensejou que o povo se impregnasse de espírito revolucionário. Conselhos -- "soviets" -- pipocaram, com predominância dos soviets de operários e soldados. Na prática, os soviets tinham uma força armada à disposição. Ainda assim, eles não queriam propriamente revolução: reformas que beneficiassem seus representados lhes teriam bastado. Todo o resto da agitação ficou com Lênin e seus minguados bolcheviques (nem todos!): conforme o próprio Lênin chegou a admitir, "a revolução bolchevique se antecipou às massas".

A decomposição do governo Kerensky. Com o parlamento dissolvido -- a pretexto de uma prometida assembléia constituinte que nunca foi convocada -- Kerensky abarcou poderes totais. Mas as várias alas da coalizão governamental não se acordavam sobre os candentes problemas sociais a resolver. No auge das discussões, não faltavam exclamações do tipo "Mas como reagirá o mundo dos negócios [o mercado, na linguagem de hoje]?". Paralisia do sistema: os tais plenos poderes se tornaram na verdade impotentes. Kerensky e seus próximos terminaram por se esconder da agitação das ruas na solidão do Palácio de Inverno, logo tomado pelos bolcheviques com poucas escaramuças: alguns feridos e só (aconteceram ainda simbólicos tiros de canhão contra o navio cruzador Aurora). Os bolcheviques açambarcaram totalmente o poder e empreenderam suas reformas radicais. As elites da época foram definitivamente varridas do mapa político e econômico da Rússia. Bem no âmago de seus pensamentos, Lênin lhes teria sido agradecido "por deixá-lo passar", na feliz expressão de Alexandre Choubine.

Em nosso Brasil de sempre, à questão social acresça-se a corrupção. Como na Rússia de 1917, nossos kerenskys estão brincando com fogo. Claro, para eles uma revolução brasileira é inimaginável. Nem lhes ocorre que diversos países desenvolvidos tiveram que recorrer a revoluções em suas jornadas históricas: França e Estados Unidos são formidáveis exemplos. De tanto tripudiar com a nação e seu povo, de tanto, de tanto, terminarão por perder o controle da situação. Uma imprevisível revolução poderá ser o final do drama. Parem de brincar!

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O povo contra a corrupção



A Romênia fica nos confins da Europa Oriental, às margens do Mar Negro. Nos primórdios, uma província romana. Em comum com o Brasil, as respectivas línguas latinas. Enquanto a língua portuguesa é, a oeste [de Roma], a "última flor do Lácio" (Olavo Bilac), a língua romena é a flor derradeira, a leste. País cultivado, tornou-se uma potência em ginástica artística: nas olimpíadas de Montreal em 1976 sua estrela maior, Nadia Comaneci, maravilhou o mundo artístico-desportivo. Reverso da medalha, seu povo amargou por longos 25 anos a ditadura cavernosa de Nicolau Ceaucescu (como se fosse possível uma ditadura luminosa): o ditador terminou por morrer fuzilado, como sói acontecer com tantos tiranos.

O fim humilhante da ditadura de Ceaucescu não foi suficiente para livrar a Romênia da penúria econômica e da corrupção. Mas há robustas esperanças: o povo resolveu dizer "Basta!" diante da mais recente violência contra ele. No início de fevereiro, o governo social-democrata de Liviu Dragnea, chegado ao poder em dezembro último, elaborou uma imoral emenda constitucional visando a modificar o Código Penal para despenalizar delitos graves de corrupção. Uma mal disfarçada anistia aos corruptos (qualquer semelhança com o governo Temer não é mera coincidência). A formidável reação popular não se fez esperar: gigantescas manifestações obrigaram o governo a voltar atrás. Por prevenção contra delinquências futuras, o povo não arreda pé das ruas: centenas de milhares de romenos se reúnem todas as noites na Praça da Vitória e arredores, em Bucareste, para gritar sua rejeição à corrupção -- uma revolução branca.

Fim da era de resignação dos romenos. Opera-se uma profunda mudança de mentalidade, qual seja, o nascer de uma poderosa consciência cívica. Implicação total do povo nos destinos da nação. Muitíssimo importante, a cruzada popular não arremete unicamente contra a corrupção: a fria e anti-povo burocracia político-financeira está na mira, e como. Da mesma forma que o comunista Nicolau Ceaucescu em outros tempos, o social-democrata Liviu Dragnea vê interferência estrangeira em tudo, insistindo que as manifestações não têm nada de espontâneo; apressa-se a querer comprar o povo com promessas de aumento salarial e benefícios para os aposentados. Nada indica que o engodo vá funcionar: a revolução branca dá fortes mostras de assimilar que "o preço da liberdade é a eterna vigilância".

No Brasil, a gang do "vamos estancar a sangria da Lava Jato", incrustada nos poderes executivo e legislativo -- e com preocupantes ramificações no judiciário --, opera diuturnamente para proteger seus apaniguados, seja fabricando emendas à constituição "para ver se cola" a fim de impedir prováveis condenações, seja por tentativas de obstrução de investigações. A escancarada desfaçatez não tem limites: cite-se somente a declaração do inacreditável senador Edison Lobão -- afrontosamente, presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado --  de que o caixa 2 das campanhas eleitorais é constitucional (sic). O abominável foro privilegiado é encarado como um refúgio seguro para vilões investidos de mandato parlamentar, desmoralizando e descreditando o Supremo Tribunal Federal.

Para completar as desalentadoras perspectivas, o povo, última e invencível trincheira anti-corrupção, parece jazer entorpecido.

Opa! Não é bem assim: surgem sinais do despertar da letargia. Os dois principais movimentos pró-impeachment de Dilma Rousseff  -- Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem Pra Rua -- começam a se mexer de novo. O mote principal das mobilizações marcadas para o dia 26 de março são a defesa da Operação Lava Jato e o fim do foro privilegiado. Palavras do líder do MBL, Kim Kataguari: "Talvez a diminuída da temperatura das ruas tenha passado a impressão para o Congresso de que o povo não está mais atento ao andamento da Lava Jato". Rogério Chequier, que comanda o Vem Pra Rua, afirma que "... estão buscando impunidade para políticos, e isso o povo não pode tolerar". Outros grupos, como Nas Ruas e Movimento Liberal Acorda Brasil,  começam também a se reativar.

Além do combate sem tréguas à corrupção, a participação popular é imperiosa nas discussões ora em curso sobre as reformas da previdência, trabalhista e política. Que novos e vigorosos movimentos de rua floresçam, desfraldando suas bandeiras das reformas: deixá-las sob a exclusiva batuta do governo e do congresso, é certo que elas, as reformas, acabarão tendo feição anti-povo.

A democracia representativa em crise profunda, a democracia semi-direta toma impulso. A pressão popular se exerce sobre seus representantes políticos, exigindo-lhes atuar em sintonia com as reivindicações e anseios dos representados. A democracia semi-direta tem sido efetivamente praticada -- com mais ou menos intensidade -- na Tunísia, Romênia, Brasil, ... e também nos Estados Unidos e França. É auspicioso. Cabe aos politicólogos e sociólogos decorticar o fenômeno.  

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Sociedade da Aceleração



O que é o tempo e qual a velocidade do tempo? O tempo está para o ser humano assim como a água está para o peixe: um 'fluido' dentro do qual ele vive e se transforma. A velocidade do [fluido] tempo é constante. Acontece que as pessoas se enchem mais e mais do que fazer: o tempo lhes parece encurtar ou acelerar. Exclamações nada saudáveis tais como "vivo correndo atrás do tempo" e "não tenho tempo para nada" são a tônica. Fenômeno da contemporaneidade, quase todo o mundo se sente em descompasso com 'seu' tempo: bom mote para reflexão.

Horário flexível de trabalho (ou até mesmo redução da jornada de trabalho), meios de transporte rápidos, comunicação imediata: nenhuma época além da nossa propiciou tanto tempo para dispor, e em nenhuma outra época as pessoas têm a impressão de falta de tempo -- a sociedade da aceleração. Ela faz adoecer mentes e corpos. O pedagogo alemão Karlheinz Geissler decortica o mal-estar e propõe novas práticas para ao menos amenizar os malefícios da sociedade da aceleração*.

Com a internet, vive-se uma falsa sensação de liberdade, caracterizada pela conexão ilimitada. A sobrecarga de esforço que isso gera não deveria ser negligenciada. Para ilustrar, nos anos 70, trocava-se em torno de mil emails por ano; hoje em dia o número pode se elevar a trinta mil. E o que dizer dos smartphones -- WhatsApp, Facebook, Twitter -- que inundam a todos de mensagens e informação? No trabalho ou em casa ou na rua, a atividade é frenética (de qualidade ou não, é outra história). A informação se torna mais e mais densa e o tempo também.

Os tubarões, não dispondo de nadadeiras, têm que se movimentar ininterruptamente. Quantos humanos padecem da síndrome do tubarão. Com a distinção de que os tubarões não têm outra alternativa de vida. Os seres humanos não se dão o direito de nada fazer: o descanso é considerado tempo perdido. A duração média de sono do homem contemporâneo diminuiu de duas horas desde o século XIX, e de meia-hora a partir dos anos setenta. Indistinção entre dia e noite, tudo é acessível a todo momento. O sono, necessidade vital, é um desperdício de tempo para a lógica "tempo é dinheiro" do capitalismo . O tempo para as interações pessoais míngua ou desaparece. A liberdade propiciada pela internet -- uma coisa muito boa, em princípio -- termina por ser ilusória e malfazeja para mentes e corpos. Solidão, estresse e distúrbios cardíacos -- em alarmante intensidade -- o atestam.

Em busca de vida saudável, é hora de libertar-se da ditadura do relógio em prol do tempo natural. Nosso corpo, como todos os seres vivos na natureza, funciona segundo ritmos. Diferentemente do relógio, que se repete com exatidão, o ritmo se repete com folga. Considere-se não usar o despertador: não impede de despertar sempre por volta de 6 horas; não exatamente às 6, um dia alguns minutos antes, outro dia alguns minutos depois. O corpo agradece. A mente também. "Mens sana in corpore sano". Eis a organização temporal afinada com nossa biologia.

Uma pequena sesta ao meio-dia: o corpo precisa de pausa. (Não precisa exagerar como em Pamplona, capital da província espanhola de Navarra. Cheguei lá em uma tarde de verão, pouco depois das 13 horas: tudo fechado, de 13 às 16 horas. Cidade quase deserta, pessoas cochilavam em bancos de  praças. A "siesta" é sagrada, não só no caloraço do verão como também no gelado inverno. O tempo normal é prioridade para os cidadãos de Pamplona.)

Os empresários deveriam respeitar o ritmo natural de seus empregados. Que mal haveria em flexibilizar o horário de entrada no trabalho? Em pesquisa junto a grandes grupos industriais alemães, chegou-se à conclusão que existem poucos processos de produção exigindo de seus envolvidos começar ao mesmo tempo.
   
Diz-se com propriedade que, enquanto para uma criança o tempo passa bem devagar, para um adulto ele é curto e crescentemente acelerado à medida do envelhecimento. A interpretação corrente é que quanto mais aproxima-se do fim mais aviva-se a sensação de que o restar da vida se esvai. Mas pode-se ver tudo de forma construtiva e sem fatalismo: a criança está sempre aprendendo/fazendo/vendo coisas novas -- a criança tem tempo, em seu ritmo normal (recorde-se: a criança não escolhe o lugar onde cair no sono); contrariamente e por razões sobretudo culturais, o idoso tende a perder o afã por coisas novas -- o idoso arrisca não ter mais tempo.

Este blog é um de meus aprender/fazer/ver coisas novas, impulsionado por leitores cada vez mais numerosos. Não importa a submissão parcial à ditadura do relógio, impondo-me publicar milimetricamente às sextas. Karlheinz Geissler que me compreenda: sair de meu ritmo natural, nesta caso, é um prazeroso tributo a meus leitores.


*- Courrier international, 02-08/02/2017.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Renda Mínima Universal



A persistente crise socioeconômica mundial e o vazio de ideias renovadoras nos domínios da economia e da sociologia, dois fenômenos que caminham pari passu. Insuportável o discurso recorrente dos 'economistas do mercado': loucura senoidal das bolsas de valores, enchendo os bolsos de uns e esvaziando os de outros; loas aos 'criativos' que ganham dinheiro com o aquecimento global; como enriquecer ainda mais com a recessão; PIB importa muito, distribuição de renda importa pouco; mais lucros, menos salários; superávit fiscal para remunerar os rentistas. Em resumo, o mundo que lhes parece interessar é o mundinho dos endinheirados e dos especuladores. Bancam avestruz diante da bomba relógio da explosão social: ignoram (mal-intencionados?, comprometidos?) a crescente perda de qualidade de vida ou completa marginalização da imensa maioria das populações, bem como não se incomodam com a rápida deterioração do planetinha. Os sociólogos, quanto a eles, onde estão?

O economista britânico Guy Standing, da Universidade de Londres, chama a massa dos desafortunados da desigual ordem socioeconômica de a perigosa nova classe das gentes em estado de precariedade (título de seu recente livro: The Precariat: The New Dangerous Class). Os precários "escutam o canto das sereias do populismo neofascista, interpretado atualmente por Donald Trump". E por Marine Le Pen, et caterva.

Diante de um contexto tão desalentador, o surgimento por si só de propostas novas no sentido do social merece toda a atenção. É bem o caso da renda mínima universal, objeto deste artigo.

A ideia de Guy Standing é singela: uma dotação sistemática a todos os adultos, não importando a situação financeira. É isso mesmo, até os ricos receberiam: zero burocracia seletiva, e pronto; ou nenhum custo de implantação. Ele enumera os principais pontos a favor: (1) justiça social, citando em apoio Thomas Paine, o intelectual franco-americano que no longínquo 1795 preconizava um "donativo cidadão" a toda pessoa privada da herança natural de bens da mãe-terra, perda causada pela propriedade individual; (2) erradicação da pobreza extrema; e (3) um alívio à insegurança crônica provocada pela desigualdade crescente.

Dois contra-argumentos e sua contestação. Primeiro, os custos de um tal programa seriam exorbitantes. Cita-se o exemplo dos Estados Unidos: em 2013, o país contava 242 milhões de adultos. Supondo que cada um recebesse 10.000 dólares anuais, as despesas chegariam a 2 trilhões e 420 bilhões de dólares, ou seja, três vezes o montante atual dos gastos sociais do governo norte-americano. Esquece-se, como acentua Guy Standing, que a renda mínima universal substituiria todos os programas sociais existentes; ou seja, a renda universal seria o único programa social. A mais, Guy Standing advoga a criação de fundos soberanos com a finalidade de financiar parte do programa, nos moldes dos congêneres já existentes no Alasca e na Noruega, abastecidos com royalties do petróleo (no caso da Noruega, é uma reserva antecipada para os tempos pós-petróleo). Outras fontes de financiamento, indicadas sobretudo para países sem petróleo: taxação de abastados rentistas e de proprietários de opulentos patrimônios, adquiridos ou herdados.

Segundo contra-argumento. A renda mínima estimularia a indolência e o abandono do trabalho. Em verdade, a crítica cabe aos sistemas vigentes de ajuda aos pobres: não vale a pena abrir mão de dotação estatal em troca de emprego ou subemprego mal pago e ainda passível de encargos; trocando em miúdos, o líquido do baixo (sub)emprego seria inferior ao amparo social. Ao contrário, com uma renda básica decente e assegurada, todo emprego -- não importando sua qualidade e as obrigações trabalhistas decorrentes -- implica necessariamente em renda adicional, o que encorajaria as pessoas a procurar trabalho.

Guy Standing não tem sido o único a propugnar pela renda mínima compulsória, longe disso. A exemplar Finlândia já pratica sua modalidade de renda básica. Na França, a nova estrela política Benoît Hamon, nascida dos escombros do Partido Socialista, tem sua proposta de renda mínima. Universal como a de Guy Standing, ele sugere que o dinheiro venha em parte de um "imposto robô"; mais precisamente, as empresas que dispensam recursos humanos por automação devem pagar um imposto social compensatório.

Aqui no Brasil, o denodado ex-senador Eduardo Suplicy -- um petista sem mácula -- tomou repetidos e deselegantes chás de cadeira da então presidente Dilma Rousseff, na tentativa frustrada de convencer a presidente a operar para por em prática sua Lei Suplicy de renda mínima.  Isto mesmo: Lei 10.835 de janeiro de 2004, aprovada pelo Congresso e sancionada, instituindo a renda básica de cidadania. Pela lei, todos os brasileiros e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no país devem receber um benefício monetário suficiente para atender às despesas mínimas com alimentação, educação e saúde. Programa à prova de corrupção, posto que universal. Desnecessários o bolsa família e todos os demais programas sociais existentes. Como se vê, um dos problema do Brasil não é a falta de leis, mas sim a não observância a leis.

Se até há pouco tempo os defensores da renda mínima eram considerados uns "loucos solitários" -- em pindorama, muitas pessoas se referiam pejorativamente ao ínclito Eduardo Suplicy como "o chato da renda mínima" --, hoje não é mais assim: a renda mínima está na ordem do dia nos mais diversos cantos do mundo. Que o debate em torno prospere!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

França: Direita, volver



A potência sócio-econômica francesa tem involuído -- é isso mesmo, involução -- na era da globalização e da expansão da União Europeia (UE). É suficiente prestar atenção a dois indicadores chave: desemprego e desigualdade de renda.


O gráfico da taxa de desemprego no período 1980-2020 mostra que, a partir de 1992, só em breves intervalos a taxa foi inferior a 9%; na maior parte do tempo, valores muito superiores a 9%, chegando ao pico de 11% (ver os pontos do gráfico acima da linha horizontal para a cota 9). 1980 foi o último ano comparativamente virtuoso, com sua taxa de desemprego em torno de 6,35% -- a seta no gráfico aponta para o ponto (1980, 6,35). Face ao longínquo 2020, a previsão ainda é de 9%.

Com notável consistência, o economista francês Thomas Piketty, em seu indispensável livro O Capital no Século XXI, prova que 1980 foi o ano da inflexão da distribuição de renda: antes de 1980, a desigualdade de renda decrescia quase monotonicamente; depois de 1980, a desigualdade passou a crescer de forma aproximadamente monotônica, com fortes evidências de manter a tendência.

A baixa política tem acompanhado a débâcle social e econômica. Os sucessivos governos democráticos de direita e de esquerda fracassaram rotundamente em encontrar saídas para o marasmo crônico da sociedade francesa; particularmente, as figuras políticas de Nicolas Sarkozy (direita) e François Hollande (esquerda) deixaram seus militantes republicanos e socialistas completamente sem bússola, além do descrédito da opinião pública.

Tem mais. A imigração desenfreada causa perplexidade e temor. A insegurança física está na ordem do dia, depois da série de atentados dos últimos vinte meses: a "guerra contra o terrorismo" de François Hollande não convenceu a nação, que espera aflita a próxima ação terrorista. Os valores e os símbolos nacionais, outrora tão caros aos franceses, estão em xeque: um número crescente de empresas busca seus lucros deslocando-se para países mais pobres; quantos jovens altamente capacitados procuram emprego seja no Reino Unido seja nos Estados Unidos.

Campo fertilizado para a floração rápida da extrema direita de Marine Le Pen, abundantemente irrigado pela extrema direita de Donald Trump, no poder dos Estados Unidos. Um terço do eleitorado francês é lepenista do partido Frente Nacional. O discurso é feroz: combate irracional aos muçulmanos e aos islamistas; anti-semitismo; não total à imigração; barreiras comerciais protecionistas; saída da UE. 

Que ninguém se engane com Marine Le Pen: tal como Donald Trump, ela não é um reles político folclórico. Ao contrário, ela compreende as dificuldades das pessoas ordinárias -- o paralelo com Trump se ressalta --, diferentemente aos diplomados das grandes escolas das elites que oscilam entre a função pública e os partidos tradicionais carcomidos. É também hábil no plano tático: em resposta a uma proposta de Sarkozy para isolar sem julgamento os indivíduos suspeitos de radicalização, ela lembrou a importância de respeitar o Estado de Direito; e manteve suas distâncias em relação ao acirrado debate em torno da lei sobre o casamento homossexual.

Marine Le Pen encontra eco lá onde as chamadas elites pensantes não conseguem se fazer entender. Sua Frente Nacional é mais aceita junto à classe operária do que qualquer outro partido. Marine Le Pen agora ocupa um lugar central na política francesa, ganhe ou não as eleições presidenciais que acontecerão em futuro próximo: direita, volver!

Reflexões. Análises simplistas dificilmente funcionam em matéria de economia. Porém é fácil constatar o seguinte: no fundo, os verdadeiros ganhadores da globalização se resumem à China e, em menor medida, à Índia. (O Brasil -- um BRIC como China e Índia -- ensaiou agarrar a oportunidade, contudo insistindo em ser apenas um país exportador de produtos primários, desperdiçou a chance.) Os países desenvolvidos vivem sua crise sem fim, em maior ou menor monta.  Tirante as elites transnacionais e as classes médias que adoram consumir bem e barato, o grosso das populações tem mais é a lamentar a deterioração do nível de vida, quando não o desemprego ou o subemprego. Em sua obra de 1998 já seminal e premonitória -- L'illusion économique : essai sur la stagnation des sociétés développées ("A ilusão econômica: ensaio sobre a estagnação das sociedades desenvolvidas") --, o cientista político e historiador francês Emmanuel Todd analisa com argumentação forte e embasada os fatores da globalização que levariam às crises existenciais dos países desenvolvidos, afinal claramente percebidas. Em verdade, Todd faz uma reflexão econômica e filosófica sobre a decadência das democracias ocidentais, que estariam sendo solapadas pela impulsão dos extremismos (de direita). Qualquer semelhança com os tempos atuais não é mera coincidência

Nas águas agitadas do "Abaixo a globalização!", os extremismos de direita navegam de vento em popa. Alarmante! Eles devem ser combatidos na luta política devido a seu caráter autoritário, racista e xenófobo (o extremismo de Trump é, ademais, mentiroso e torturador). Todavia, muita atenção: o povo não entende e não gosta de discursos abstratos.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Neocolonialismo Digital



Neocolonialismo é o domínio que um país exerce sobre outro pela influência econômica e/ou cultural. O notável é que um diminuto 'país' pratica um neocolonialismo de amplitude planetária. O 'país' é o chamado Vale do Silício, uma área equivalente a um círculo de 80 km de raio em torno da cidade de Palo Alto, ao sul da metrópole californiana de São Francisco, USA.

O poderio das empresas do Vale do Silício é de pasmar. Dos vinte maiores conglomerados high-tech do mundo em 2015, onze eram norte-americanos sediados no Vale do Silício (ver também neste blog Os Visionários GAFA -- Google, Amazon, Facebook, Apple --, publicado em 18/09/2015); os demais: sete chineses, um japonês e um norte-americano de Boston. O Vale do Silício representa sozinho 76% da capitalização mundial em bolsas de valores e 87% do volume global de negócios com tecnologias digitais de informação. Google controla 12% de todo o dinheiro gasto mundialmente com publicidade! Mais da Google: 54% de seus 75 bilhões de dólares de faturamento em 2015 vieram d'além do Vale do Silício. O desaquecimento econômico mundial não passa pelo Vale do Silício. Se o crescimento planetário patina enquanto que o high-tech vai de vento em popa, então é porque a maior parte dos demais setores da economia está mergulhada em recessão. Daí então que o Vale do Silício é uma grossa bolha econômica.

Uma interessante pergunta se impõe: por que tanta concentração de empresas high-tech no (exíguo) Vale do Silício? Contrariamente ao esperado em nossa época ultra conectada, o sucesso de uma empresa de alta tecnologia não depende só de mão de obra ultra especializada mas igualmente de todo o eco-sistema que a cerca -- diferentemente das organizações manufatureiras tradicionais. É a razão pela qual o Vale do Silício, por força de tantas empresas afins, oferece condições ímpares à instalação de mais empreendimentos inovadores.

O resultado é que todos os países, o restante dos Estados Unidos inclusive, acabam se tornando neo colônias do Vale do Silício. O lado bom do neocolonialismo digital não pode ser ignorado. Tome-se o exemplo do telefone celular: ele reúne diversas outras funções, como máquina fotográfica e lanterna; serviços de telefonia baratos ou gratuitos, via aplicativos tais como WhatsApp ou Skype; músicas a preço módico ou sem custo; idem para videos, filmes, séries e shows; etc. Sem esquecer o principal: acesso quase ilimitado e de graça à informação. Com tanto valor agregado, o mais caro smartphone ainda pode ser considerado muito barato. Em resumo, as novas tecnologias digitais globalizadas permitem ao mesmo tempo aumentar a qualidade dos produtos e baratear seus custos. (A bem da verdade, a tendência à redução de preços por efeito da tecnologia e da globalização também se aplica a produtos físicos: para ilustrar, acabo de comprar quase de graça uma bela camisa confeccionada em Bangladesh.)

Todavia, como em tudo na vida, o lado ruim vem de par. O Vale do Silício não dissemina riquezas, pelo contrário, concentra. Quase todos os principais acionistas de Facebook vivem lá. Pessoas brilhantes, de qualquer parte do mundo, se inclinam a morar no Vale do Silício quando querem criar suas empresas especializadas em novas tecnologias digitais. O efeito colateral é que o resto do mundo não está gostando nada de sentir-se marginalizado no plano econômico, mesmo comprando bem e barato. Pondo o foco nos Estados Unidos, excetuando o Vale do Silício e outras poucas regiões, o país vive em dificuldade. Os salários das classes médias estagnam desde vários anos; o subemprego é alto; o desemprego não é negligenciável. Em consequência, os norte-americanos em boa parte se sentem encolerizados e impotentes: Donald Trump pescou nessas águas revoltas o substancial de seus votos vencedores.

No avançar de sua fulgurante história, o Vale do Silício vai precisar operar de tal modo que o resto do mundo possa também ser beneficiário da prosperidade. Duros recados não lhe faltam: ações regulatórias cada vez mais restritivas por parte dos governos -- isso é bem um fato na Europa -- e talvez logo, logo, movimentos Occupy Silicon Valley de ativistas em fúria.

Sobretudo, o Vale do Silício não deveria ignorar os ensinamentos da História: questão de mais ou menos tempo, todos os impérios nascem, crescem e morrem. É mister prestar especial atenção à Ásia. A Grande Tóquio foi a que mais depositou patentes em 2013, à frente até da conurbação tecnológica chinesa Shenzhen-Guandong. O Vale do Silício se colocou em 'modesto' terceiro lugar. Ou seja, na olimpíada das inovações tecnológicas, o Vale do Silício é só medalha de bronze! Motivo para inquietar, e quanto, os Midas do Vale.


Principal fonte - Silicon Valley, The new Rome, por Kevin Maney. Artigo publicado na
revista norte-americana Newsweek, em 09/06/2016.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Ecos de Buenos Aires



Cidade que ama os livros. (1) O "templo da leitura" fica na Avenida Santa Fé, em Buenos Aires: livraria El Ateneo Grand Splendid. A mais bonita do mundo e uma das maiores, a imagem a seguir não deixando exagerar.

El Ateneo Grand Splendid

O ex-teatro Grand Splendid foi o cenário de grandes espetáculos e hoje é um espetáculo de livraria. Os balcões e a platéia são inteiramente ocupados por livros, arrumados em estantes temáticas. O amplo foyer (não aparece na imagem) é o outro espaço repleto de livros. Para dar uma noção da completude da El Ateneo, o tema "Einstein" ocupa quase toda uma estante. O palco é para tomar um café, comer uma guloseima ou buscar um recanto para ler. Cultura e encantamento. (2) Num trecho de aproximadamente um quilômetro da Avenida Corrientes, contam-se nada menos de 30 livrarias, para todos os gostos. (3) Buenos Aires tem mais livrarias por pessoa do que qualquer outra cidade do mundo.

Tango. O tango não é triste, melancólico, nostálgico, choroso. O tango é alegre.  ... Foi Carlos Gardel quem deturpou o espírito original do tango: obcecavam-no os dramalhões tipo homem abandonado por mulher (Jorge Luis Borges). O espetáculo Pasión de Tango, em cartaz no teatro do Centro Cultural Borges. é tango alegre.

Fugir do merchandising do tango. Não faltam casas de tango em Buenos Aires, claro: o tango é a maior atração turística da Argentina. Não impede de tomar precauções. Com insistência, propagandeia-se tango ordinário: antes equilibristas ou malabaristas que dançarinos. Complementando a insurgência de Borges contra a deturpação desse magnético gênero musical, tango também não é circo!

Café Tortoni. O destino na Avenida de Mayo era o Café Tortoni. Ingredientes: o décor é lindo; Borges o frequentava nos finais de tarde, para saborear chocolate com churros e conversar altas literaturas com seus amigos literatos. Final de manhã, eis que a fila de espera se estendia por uns cento e cinquenta metros (todos com jeito de turista, xô portenhos!). Voltando ao anoitecer, outra fila quase do mesmo tamanho. Frustrante resultado: o icônico Café Tortoni permanece somente em minha imaginação.

Flanar por Buenos Aires. Perambular pelas ruas, com conforto para o corpo e para a visão, é a melhor maneira de avaliar e 'degustar' uma metrópole. Neste sentido, Buenos Aires continua sendo a melhor cidade da América do Sul. Segue-se um rol de bondades para o pedestre: frondosas ruas e avenidas; graciosos bares e restaurantes, com mesas nas calçadas; bancos para descansar; calçadas largas e quase sem buracos; atenção aos populares: uma profusão de sinalizadas e respeitadas passagens para pedestre; sensação de segurança; tango alegre, aqui e acolá; violinistas clássicos; clima de festa: todo o mundo palrando nas vias; numerosos, cuidados com esmero e maravilhosos parques, com um verde de arrepiar.

Boteco. Todas as noites, exaurido da peregrinação diurna pela cidade, procurava descanso no simpático boteco (é boteco mesmo, em espanhol) da esquina próxima ao hotel. Comanda a casa um simpaticíssimo senhor argentino, com seus dois atenciosos e jovens filhos. Asseio exigido, os meninos preparam os tira-gostos devidamente munidos de luvas. Outra diferença em relação a nossos botecos: uma destacada vitrine de cremosos e deliciosos sorvetes; sorvete e cerveja, uma mistura bem ao gosto dos portenhos. No que me concerne, sorvete de doce de leite e cerveja Quilmes. Conversávamos, eu e o senhor, amistosas trivialidades; não sei por quê, esquecemos de falar de futebol, mesmo sendo o boteco escancaradamente Boca Juniors.

Réveillon. Como em toda grande cidade, um mundo de gente multifacetada sassaricando sob fogos de artifício. Em um restaurante estrategicamente situado -- amplo panorama do canal entulhado de pessoas do moderno e bem concebido bairro de Puerto Madero --, excelente comida, bom vinho malbec e honesto champanhe.

Perón e Evita. Nos quiosques, os inevitáveis posters de Perón e Evita. Pode?! Não admira que Buenos Aires tem mais psicanalistas por pessoa do que qualquer outra cidade do mundo. Psicanálise freudiana, bem entendido. Neurótica Buenos Aires!

Caução. Pois não é que um restaurante, na deslumbrante Galerias Pacifico, cobra caução?! Explica-se: a caução é embutida na conta cobrada antecipadamente, só sendo devolvida mediante a devolução do prato e dos talheres usados. Tem gente querendo roubar pratos e talheres: não pode haver outra explicação. Registre-se que a Galerias Pacifico é um grande ponto de turistas. Eita mundo bizarro!

Política e economia. Cristina Kirchner e Dilma Rousseff: sósias nos descaminhos da política e da economia. Mauricio Macri e Michel Temer: condutores sem bússola de capengas economias. O motorista de táxi, ao passar diante do Palácio do Congresso -- uma raquítica imitação do Capitólio norte-americano --, exclamou: "Casa de Delinquentes!". Os jornais de referência -- La Nacion e Clarin -- se insurgem contra o vazio de ideias e ações do governo para tirar o país da recessão econômica; nada além da cantilena do ajuste fiscal. A corrupção não está no nível petrolão, mas é grossa corrupção. À parte o impressionante paralelo com o Brasil, uma obscena inflação de 40% ao ano. A persistente crise deixa suas feias marcas na silhueta de Buenos Aires: os sinais de deterioração disputam com a pujança da cidade.

Triste peso argentino. Sai-se rico de uma casa de câmbio e descobre-se pobre na primeira esquina. O peso argentino se desfaz, evapora: qualquer comprinha leva centenas de pesos. Uma desmoralizada moeda que dá insegurança a todo instante.

Televisão. O canal de notícias TN Todo Noticias se parece demais no conteúdo com nosso GloboNews (ou BandNews, ou qualquer outro News). Vai uma alentada e feia amostra: a extensa região La Pampa, um dos celeiros agrícolas do mundo, incandescendo por efeito das descargas elétricas das tempestades deste verão absurdamente quente -- fez 37 graus em Buenos Aires --, deixando desabrigados e prejuízos sem conta; violência nas praias (Mar del Plata, Villa Gesell e outras): crimes passionais, furtos, roubos, latrocínios, afogados e desaparecidos; infame continuação de assassinatos machistas de mulheres; favelização de periferias; manifestações de protesto em bairros periféricos contra a carestia, a insegurança e o desabastecimento de água; debates acesos sobre questões políticas, econômicas e sociais: por exemplo, maioridade aos 14 anos (sic), tal a delinquência juvenil.

Brasil visto de lá. Nossas decantadas praias -- de Florianópolis, no caso --, com  a conjugação de mar verde, areias finas e natureza luxuriante: os argentinos adooram. (Em tempo: o rio-mar Rio de la Plata, a 'praia' de Buenos Aires, é marrom escuro e a areia é grossa e enegrecida, quando tem areia.) O massacre na penitenciária de Manaus é destaque abundante na televisão e nos jornais: em verdade, o mundo inteiro se escandaliza. Custo de vida: para os argentinos, o Brasil ainda é um país comparativamente barato.

Em suma, a Argentina não vai bem todavia Buenos Aires mantém a classe: vale demais a pena (re)visitá-la.